Tuesday, November 27, 2007

Uma poltrona.

Boa noite!

São 11:32 e eu preciso escrever algo.Aí vai.

Era mais um dia comum no céu.Sentado naquela poltrona, sentia o céu igualzinho ao mundo, apesar de no céu haverem algumas limitações, algumas pequenas diferenças, como ninguém nunca envelhecer, não haver comida, bebida e, principalmente, não haver tristeza."O céu é um lugar legal", pensa."Pelo menos aqui não tem autoridade pra nos submeter a nada, e ninguém tem medo da morte, pois aqui a gente não tem morte.Aqui a gente espera pela vida de novo".E naquela mesma poltrona, começou a pensar que o céu era como a vida, a gente achava meio chato no começo, ficava meio indignado com as regras, mas no fim das contas ia se acostumando.
Conheceu Napoleão alguns dias antes, que continua parado no portão sem saber se vai entrar, e se decepcionou: ele não era um bom companheiro de conversa, pois não sabia escutar os outros.Conheceu alguns santos, pessoas legais, mas muito ocupadas.Conheceu São Pedro, não no portão de entrada, pois não é ele quem nos recebe, isso é loucura das historinhas da Turma da Mônica, na maioria das vezes é mais algum anjinho loiro de cabelos cacheados que era modelo na terra.Conheceu São Pedro no dia de uma tempestade terrível que inundou a Tailândia inteira, foi um caos tão grande que o próprio teve que sair pelo portão da frente pra resolver a situação.Não havia conhecido muita gente, no entanto.O céu era um lugar grande, e nunca seria possível conhecer tudo, pois o céu era, sim, infinito.
Naquela manhã obviamente azul-turquesa, o sol batia ainda fraco por debaixo das nuvens, mas fazia com que a temperatura ficasse levemente agradável, com aquele ar ainda frio da madrugada, e uma leve sensação de que o chão ia se esquentando junto ao dia.É engraçado que no céu sintam-se os dias como se sente na terra.A madrugada e o seu silêncio que acalma os nervos, a manhã e a freneticidade das 9:30, onde sem dúvida existem aspiradores de pó barulhentos ligados em todos os lugares, o quedar da tarde amarelada, como se o dia estivesse descansando daquela manhã cheia de sol, de sons e movimentação.Daí para o início da noite, ainda se livrando dos últimos resquícios de loucura do mundo, até a perfeita calmaria que vai até a nova madrugada.O céu não é diferente.Ás vezes acomodava-se naquela poltrona
o dia inteiro, só para sentir como é viver como o dia.No céu, não há tempo a se ganhar, temos tempo para tudo, e ainda sobra tempo pra não fazer nada mais tarde.
Já era a sua primeira semana no céu, e ás vezes pareciam meses, ás vezes pareciam segundos.Ouvia vozes que somente ele ouvia, mas todos diziam ser completamente normal nos seus primeiros meses no céu.Até agora, não achara muitos passatempos.Tocar harpa era difícil, e nunca teve aptidão para música, conversava ás vezes, mas não tinha muitos amigos, e não queria trabalhar no portão, nem na burocracia do purgatório.Gostava de sentar na poltrona e observar o dia passar, por mais chato que parecesse ser, nunca era tão maçante assim.Algumas pessoas paravam para conversar, ou lhe questionavam o porquê de não sair dali, no fim costumava ser divertido.
Ali sentado, lembrou-se do dia em que chegou, e encontrou Napoleão gritando furiosamente que merecia entrar no céu devido aos seus feitos, e um velho barbudo que parecia ser São João acalmava-o pacientemente.Havia também um senhor magro e idoso que gritava o apocalipse aos berros para a terra, que já não podia ouvi-lo mais, e muitas poltronas, todas ocupadas.A maioria das pessoas permanecia calada, alguns falavam sozinhos, ou balançavam-se como se estivessem deixando-se levar pela tranquilidade dos céus.Era um ambiente ás vezes tenso, ás vezes muito tranquilo.Num pequeno balcão, ficava uma moça jovem que conversava com aqueles chegavam, tranquilizando e explicando o que havia acontecido.Era claro que haviam aqueles que não acreditavam, que gritavam, tentavam voltar, chamavam pelos entes queridos, se beliscavam, mas era tudo em vão.
Ele não teve problemas.Nem no dia da sua entrada, nem nos subsequentes.Diziam que seu espírito tinha um tom branco azulado, e que isso era uma coisa boa para os que viviam no céu, pois era um sinal de pureza celestial.Aceitava viver aquilo, como aceitou viver tudo que viveu na terra.Apenas incomodavam-lhe um pouco aquelas vozes que ecoavam nos seus ouvidos.Apesar de não compreender o que diziam, sabia que não eram sempre vozes direcionadas a ele, mas conversas de todo o tipo.Era como se se sentisse observado, e isso lhe dava um sentimento de que não fazia parte daquele céu naquele momento.Mas como todos diziam que era normal, aquietava-se e aos poucos as vozes iam embora.
Naquele dia em especial, sentiu tremenda vontade de ficar na poltrona durante o dia inteiro.Passou toda a manhã observando algumas crianças brincarem pelas nuvens sob a luz do sol, aquilo o acalmava bastante.A manhã foi em si mais tranquila do que a barulheira que normalmente tomava o céu todos os dias.Porém, aproximadamente às 2 da tarde, começou a ouvir um zunido forte e ininterrupto, juntamente com um barulho similar à pancadas que vibravam todas as nuvens.Ele se incomodou muito com aquilo, não sabia o que fazer, e aquele barulho ia se tornando cada vez mais insuportável, junto com as vozes surgindo cada vez mais alto e mais embaralhadas, deixando a sua mente completamente confusa.Pôs as mãos sobre os ouvidos, mas não adiantava, tentou pedir ajuda, mas as pessoas não ouviam nada do que ele ouvia, não entendiam o que ele queria dizer, pois todo aquele barulho distorceu também a sua fala, que se tornou tão débil e desconexa que não era possível compreendê-lo.Levantou-se desesperado, andando cambaleante na procura de um refúgio para aquele estado em que se encontrava, girou algumas vezes em pé, até perder o equilíbrio e ser abraçado pelas nuvens aos seus pés.Essa era uma vantagem em desmaiar no céu, você nunca teria uma fratura no crânio.Desmaiara, sim, mas continuava a enxergar tudo claramente.Um rosto feminino veio vê-lo, tocou-lhe a cabeça, e pôs o dedo tão fundo na sua garganta que pareceu fechar-lhe a traquéia e a glote, fazendo-o engasgar com o ar que estava retido em seus pulmões.Levantou subitamente e vomitou um líquido similar à uma pasta de dente azul e branca, e todas as vozes e o zunido foram interrompidos.
A moça que o fizera vomitar continuava a olhar para ele fixamente.Pediu desculpas, e começou a falar: "Desculpe-me, mas parece que houve um erro.Ainda não é a sua hora de vir para cá.O sofrimento causado com a sua partida da terra causou danos irreparáveis em algumas pessoas, e temos que mandá-lo de volta, ou haverão mais problemas"."Mandá-lo de volta", que irônico.Esteve no céu, e agora voltará á terra, como se nada tivesse acontecido.Não teve tempo de dizer nada, e mesmo que tivesse, de nada adiantaria.O zunido foi voltando aos poucos, as vozes aumentando, as nuvens tremendo e as pancadas intermináveis iam aumentando cada vez mais, até que no ápice do seu desespero, aquela moça deu-lhe uma pancada certeira na testa e desmaiou novamente, porém dessa vez tudo ficou preto, como num legítimo desmaio.
O tempo que passou naquele escuro são inexplicáveis.Não tinha noção de tempo, de espaço, não conseguia pensar em nada.Não teve medo, mas não teve coragem, não teve vontade de rir nem de chorar, não teve vontade de se mexer nem de ficar parado.Era como se não existisse mais, como se houvesse sido apagado.Sentiu, porém, num determinado momento, a luz voltando aos seus olhos, e eles se abrindo levemente, junto com todo o zunido e as vozes.As pancadas, porém, iam agora se afastando e se localizando no lado esquerdo do seu peito, constantemente.Abriu, enfim, os olhos.Era uma sala de hospital, e alguns jalecos brancos mantinham olhos fixos na sua pessoa, estava deitado numa cama desconfortável, e o zunido do eletrocardiograma preto e verde marcava o seu fio de vida, enquanto ouvia vozes de pessoas que ele não mais reconhecia.Um dos doutores falou com ele: "Boa tarde, senhor.O senhor acabou de acordar de um coma de oito meses.Não esperávamos a sua recuperação, mas felizmente você retornou.Como se sente?". Como se sentia? Como assim? O que havia acontecido? Subitamente acordou sem se recordar de coisa alguma, como se nunca tivesse vivido nada.Esse é um sentimento tão absurdo que as palavras não são capazes de definir exatamente.O mundo é feito de vida, e não há como definir alguém que viveu e não viveu! Sua cabeça estava tão atordoada, que esqueceu como falar, como andar, como comer, esqueceu tudo.Esqueceu como viver.
E a partir daquele dia, não pronunciou mais nenhuma palavra.Nunca mais se lembrou de nada, nem do céu nem da terra.Sentia como se todos estivessem fingindo uma grande mentira que ele não poderia saber, mas que um dia soube.Não tinha reações, pois não conseguia mais ter reações a nada.Vivia deitado, confrontando o mesmo teto branco, na tentativa de se lembrar o que havia acontecido, e o que todos tanto escondiam dele.Passou alguns dias deitado, até que numa terça-feira, às duas da tarde, uma das enfermeiras veio vê-lo na cama.Ao encostar perto do seu rosto, automaticamente reconheceu-a.Era a mesma moça que havia feito-o vomitar e o trouxe de volta ao mundo, lembrou-se dela, e aos poucos, foi como se uma luz se abrisse bem no meio da sua cabeça, penetrando nos seus olhos toda aquela informação que sempre pareceu estar na ponta da língua e dos dedos.Foi se lembrando de tudo, da poltrona, do zunido, das vozes, das pancadas, dos aspiradores de pó, das manhãs, das tardes, noites e madrugadas! Deu um grito e pulou da cama."Você me trouxe de volta! Eu não quero ficar aqui! Eu quero voltar! Voltar!" berrava e corria pelo quarto como um louco desvairado."Eu quero minha poltrona, quero as crianças, as harpas, os portões, tudo!".A enfermeira, coitada, nada compreendia, ligou para um hospício e mandou enfermeiros para buscar aquele homem que ficara subitamente louco.Alguns parentes o seguraram, enquanto tentava gritar aos céus que o levassem de volta, que não era justo, que viessem buscá-lo.
Amarraram-no numa camisa de força, porém gritou tanto, mordeu o enfermeiro duas vezes, criou tamanho caos que foi necessário também amordaçá-lo.Ninguém compreendia o que berrava pelos ares aquele sujeito, e foi impossível controlá-lo de maneira tranquila.Dentro da ambulância, porém, foi naturalmente se acalmando, como se houvesse algo dizendo que se acalmasse, e tudo ficaria bem.Convenceu com os olhos os enfermeiros, que tiraram a sua mordaça.Pediu para ver a rua pela janela, e seu pedido foi acatado.Aos poucos foi sentindo como se voltasse ao céu, sem conseguir explicar como nem por qual motivo, simplesmente sentia que tudo ia ficar bem.A ambulância virou uma esquina saindo da avenida principal, e as buzinas cessaram, fez-se um silêncio e só se ouvia o barulho do vento, dos passarinhos e das árvores balançando.Estava um pouco frio, mas o sol se pondo e o vento que entrava pela janela deixava um clima agradável dentro do carro.Finalmente, o carro parou, e ele desceu da ambulância.Um grande portão de ferro o esperava, que rangeu um pouco, abriu-se e puderam entrar.O chão era todo azulejado azul-turquesa e branco.
Logo ao entrar, viu um louco vestido de Napoleão gritando "Eu sou Napoleão Bonaparte!Deixem-me sair daqui!", e um homem de cabelos muito brancos e barba, vestido de jaleco branco o acalmava.Havia um senhor magro e velho que berrava a proximidade do apocalipse para toda a clínica, que parecia não se preocupar em ouvi-lo.Haviam muitas poltronas, todas ocupadas.Era óbvio que já tinha visto aquela cena antes.Numa enorme e serena satisfação, foi como se sua mente fosse se remontando aos poucos, desde o momento em que tomou a pancada na cabeça, até a restituição completa da sua memória, até o momento presente.Soltou uma alta gargalhada, se aproximou do balcão onde uma moça exatamente idêntica aquela no céu perguntou-lhe seu nome, e lhe explicou o porque de ter ido parar ali.Nunca havia ficado tão feliz e tão senhor da sua vida como naquele momento.Havia feito um acordo com o céu.Ao entrar pela primeira porta da clínica viu, num canto da sala, aquela mesma velha poltrona, que agora ficava de frente para uma enorme janela, onde era possível ver o sol todas as manhãs.Sentou-se ali com a felicidade de uma criança, e contam que até hoje, ele nunca saiu de lá.

Moral da história: O hospício é o céu dos homens.É preciso ser louco e entender a sua vida para lá chegar.

Boa Noite.

Quanticum.

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